Você faz aquilo que quer? E consegue querer aquilo que faz? Estas são questões sutilmente distintas e polêmicas no espaço dialógico entre as gerações do mundo contemporâneo, uma vez que a sociedade tradicional ainda valoriza a aceitação do status quo em detrimento às escolhas pessoais alternativas, ao passo que as novas gerações parecem preparadas para ouvir e atender a chamada “voz do coração”.
Antigamente as pessoas oprimidas, obrigadas a abafarem seus sentimentos e vontades mais profundas em nome da manutenção do padrão social familiar, aceitavam tal condição, adoeciam ou se rebelavam, rompendo tradições e recriando as estruturas socio-culturais.
Um forte querer pode ser sublimado ou escondido no inconsciente da pessoa por muito tempo e exatamente por não ter sido expresso, refletido ou assumido, cedo ou tarde volta à tona com intensidade, geralmente acompanhado de sofrimento paralisante ou energia motora para a transformação.
Atualmente podemos dizer que o querer mais profundo de uma pessoa pode ser aprisionado por algum tempo, no entanto vai continuar pedindo para ser libertado e encontra referência no mundo e, às vezes, suporte pelas políticas públicas. Sendo uma necessidade humana, quer ser validada e satisfeita; quando observada, é possível identificar os sentimentos negativos que são gerados por causa do seu aprisionamento.
Quando um querer é satisfeito, experimenta a sensação da liberdade, o que torna o indivíduo feliz. É o estado de se “fazer o que quer”, trata-se de um passo importante na liberação do sujeito de alguns hábitos do senso comum, atendendo a um chamado que vem do âmago da pessoa.
O desafio para alguém que vive nesse estado é que os indivíduos convivem em comunidade e os desejos pessoais às vezes afetam os desejos coletivos, o que pode causar a perda do propósito do grupo ou atrito nas relações interpessoais.
Para evitar que isso aconteça, quando em um grupo ou comunidade, o desejo pessoal começa a encontrar equilíbrio em relação aos desejos e necessidades do grupo como um todo. O indivíduo é então convidado a considerar as necessidades coletivas e com elas alimentar o seu “querer”, ainda que isso não satisfaça totalmente seus próprios desejos.
Enquanto não pudermos considerar as necessidades e desejos do grupo a que pertencemos, podemos dizer que alcançamos liberdade, mas não ainda autonomia. Enquanto a pessoa apenas “faz o que quer”, a autonomia não está suficientemente madura, porque as necessidades e anseios do grupo ficam em segundo plano, e a satisfação da liberdade a impede de prestar atenção ou dar a devida importância aos quereres que existem além do próprio.
Por outro lado, com enfoque na valorização de um ambiente harmônico, o indivíduo “quer o que faz” quando dispõe de suficiente liberdade e consciência coletiva ativada para fazer escolhas pautadas no bem estar do grupo. Isso é o que chamamos de “autonomia”, ou seja, o resultado da liberdade acrescida de responsabilidade. Sendo assim, quando se quer o que faz, o desejo primordial pela satisfação dos anseios da coletividade se fortalece, ao passo que as vontades pessoais vão sendo naturalmente superadas e deixando de ter urgência. Afinal, muitas das necessidades humanas são criadas exclusivamente para o desenvolvimento de algum aspecto interno do indivíduo. Uma vez resolvido, elas deixam de ser necessidades.
No espiral do desenvolvimento humano, fazer o que se quer pode ser considerado o movimento inicial de liberação do ser, o qual vai encontrando contorno e se transformando num querer coletivo capaz de alcançar alto nível de autonomia e caminhar, de fato, para a transformação social.